quarta-feira, 17 de junho de 2009

CONSIDERADO O MAIOR JORNALISTA-LITERÁRIO DO MUNDO, ESCREVIA SOBRE A VIDA DE PESSOAS ÂNOMIMAS

O livro o Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, é o marco inicial do gênero de romance não-ficcional

Encontrar bêbados, desdentados, paupérrimos, meretrizes, fazia parte do trabalho de Mitchell. Segundo a jornalista Renata Carraro “a característica de narrar suas histórias é uma aula de estilo literário e entrega jornalística”. A contemporização dos diálogos, a reconstrução das cenas, a partir dos depoimentos dos acusados e dos dados levantados pela perícia, permite que o leitor acompanhe os detalhes do caso como se estivesse presente no momento em que ocorreram.

Mitchell apresenta uma notável história e o perfil de um boêmio nova-iorquino que foi publicada também em dois estágios, um antes e outro depois da morte do protagonista. Vale lembrar que esta obra foi publicada pela primeira vez no jornal americano "The New Yorker" em diversas edições. A edição primorosa do genial William Shawn contribui de maneira substancial para transformar este livro em uma obra-prima. É importante ter em mente, ao ler o livro, que ele é, antes de qualquer coisa, uma reportagem jornalística romanceada e não um romance com viés jornalístico.

Essa experiência literária só se tornou possível pelo pioneirismo da "The New Yorker" e do seu editor William Shawn. Joseph Mitchel era um repórter jornalístico que gostava de retratar os anônimos, mostrando o quanto a vida considerada banal pode ser extraordinária. Sua série de entrevistas com o boêmio Joe Gould no início da década de 1940 resultou na publicação de um artigo na revista The New Yorker intitulado "O Professor Gaivota". Gould, que tinha apenas 53 anos, aparentava ter quase 70.

Era um homem de baixa estatura, cabeludo e barba densa. Vestia roupas doadas, andava com poucos dólares no bolso e péssima higiene pessoal. O que diferenciava dos outros boêmios é que circulava nas rodas culturais da cidade. Ganhou diversos apelidos e o mais conhecido deles - professor gaivota - devia-se a uma performance que costumava fazer em festas e eventos sociais imitando uma gaivota e falando "gaivotês". Gould afirmava poder compreender a linguagem das gaivotas e comunicar-se com elas. Apesar de parecer um vagabundo que filosofava ao léu, o boêmio trabalhava diariamente escrevendo um livro que denominava "Uma história oral de nossa época".

Segundo seus relatos, a obra era onze vezes maior que a Bíblia e contava com cerca de nove milhões de palavras. Era um registro de tudo o que Gould via e ouvia. A dedicação para escrever seu livro chamou atenção do jornalista Joseph Mitchel, que passou vários anos de sua vida convivendo com Gould, tornando-se uma espécie de ouvinte, parente e referência para aquele homem que carecia de atenção e do suprimento de suas necessidades básicas.

O livro divide-se em duas partes, sendo a primeira o texto integral da citada reportagem publicada na revista em 1942 e a segunda um depoimento mais extenso de Mitchel sobre seu longo contato com Gould. Ao ler o livro percebe-se que os dois textos são bem diferentes, traçando dois perfis de um mesmo homem. A sensibilidade de Mitchel e sua notável habilidade em descrever seus contatos com o boêmio nova-iorquino fazem com que o contato do leitor com o que poderia ser considerado corriqueiro ou mesmo trivial transforme-se em uma verdadeira obra de arte.

Uma das passagens mais emocionantes do livro trata do período em que Gould recebeu um patrocínio anônimo durante alguns anos. A benfeitora não queria revelar sua identidade e doava uma quantia mensal que garantia ao boêmio hospedagem modesta, alimentação e outros produtos básicos. Intrigado com o anonimato do patrocinador passou algum tempo desconfortável com a situação e tentou de diversas formas descobrir quem estava por trás da boa ação. Passados alguns anos, quando já havia se conformado com o mistério, sem dar nenhuma explicação, a mulher parou de enviar o patrocínio. Essa atitude deixou o boêmio amargurado e ainda mais infeliz do que quando não conseguia descobrir de onde vinha o dinheiro. Além de nunca ter sabido quem o ajudara, também ficou sem pistas sobre os motivos que levaram à suspensão do suporte financeiro.

Era um morador de rua. Um auto-proclamado boêmio. Uma dessas figuras sui generes que aparecem nos centros das grandes cidades por aí. Joe Gould tem um segredo. Um segredo espalhado pela cidade. Ele guarda manuscritos daquilo que chama a "História Oral de Joe Gould". Um livro que clama ser o maior do mundo, a história das vociferações humanas. Um apanhado do que pode ser a explicação das dores, sofrimentos e da solidão de quem hoje vive preso à rotina do concreto.